A situação na casa de tio Francisco continuava cada vez pior. E eu não parava de chorar.
Naquela repudiável vida, eu não podia continuar, especialmente, depois da minha má sucedida fuga.
Numa determinada sexta-feira, bem cedo, tio Francisco mandou a sua mulher me dar um banho de sabão comum, o qual assanhou as sarnas herdadas dos cachorros sarnentos que dormiam comigo junto às trempes.
Dona Zefa enxugou-me com um pedaço de lençol sujo que só fedia a urina das meninas.
Vestiu-me a mesma roupa, aliás, a única. Meu tio pegou uma bolsa velha de feirantes, colocou-a nas suas costas. Indiferente, olhou-me e disse:
“Vamos! Eu vou lhe entregar ao seu padrinho, que mandou lhe buscar”.
Seguimos percorrendo o mesmo caminho, o qual eu o havia trilhado, quando da minha fuga. Meu tio apanhou o mesmo carro. O veículo superlotado, lento, parava daqui pra li. Vez por outra, estancava. E só pegava na manivela.
Chegamos à cidade. Era a mesma cidade de antes - São José de Campestre. Tio Francisco desceu do ônibus, e não fez como aquele homem que me segurava pelo braço. Ao contrário, ele me arrastava. Logo, chegamos a uma barraca grande de mangalhos. Lá estava aquele homem bem simpático dos seus 50 anos de idade, de olhos azuis e pele vermelha. E diversos empregados tomavam conta de várias barracas grandes, também de mangalhos.
Meu padrinho olhou-me demoradamente e em seguida, tomou-me nos seus braços. Tio Francisco, sem pronunciar uma só palavra, desapareceu sutilmente, com uma rapidez incrível, sem, contudo, um adeus me dar. De cujo coração nunca me dera sombra.
Meu padrinho chamou um dos seus empregados, ao qual determinou que me levasse para tomar café em uma banca da feira. Serviram-me leite, queijo, pão, biscoitos e manteiga. Comi e matei a fome. Suspirei profundamente. O suor corria-me na testa.
Passava do meio-dia, quando padrinho João mandou que uma senhora de uma barraca de comida bem perto dele me servisse almoço. Eu não estava com fome e não quis comer. O tempo foi passando. Era grande o movimento naquelas barracas. O sol estava baixinho. Padrinho João mandou juntar aquela troçada inteira, recolhendo-a em vários caixões, que foram colocados num comboio de burros mulos e cavalos.
Padrinho João botou-me no meio de uma das cargas, enquanto ele ia montado num cavalo bonito cheio de arreios, caminhando à frente da tropa.
Foi uma longa caminhada e já era tarde da noite quando meu padrinho encurtou as rédeas do seu cavalo, parando-o em frente a uma casa grande rodeada de alpendres. Ao lado da qual existia um curral enorme cheio de gado.
Do interior da casa surgiu um grito:
Aproximou-se de nós uma senhora de estatura média, e foi ao encontro de padrinho João, que estava me retirando do meio da carga, e disse:
“Guilhermina!... Leva ele e lhe dê um banho de água morna com enxofre porque ele está empestado de sarna”.
Sem demora, madrinha Guilhermina me levou para cima de uma pedra chata semelhante a um tapete e deu-me um banho com água bem morna com enxofre para eliminar as sarnas do meu corpo. Minha madrinha rompeu o silêncio, exclamando:
“Ah, diacho!! Que danado fedorento!!?"
Terminou o banho. Enxugou-me com uma toalha bem perfumada. Vestiu-me uma roupa cheirando a nova. Colocou um par de alpargatas novas nos meus pés. Levou-me à mesa e sentou-me num tamborete, e lá ela também se sentou com padrinho João e os demais empregados. Foi servido o jantar. Era a primeira vez - na minha vida - que eu comia numa mesa junto com gente grande.
Findo o jantar, madrinha Guilhermina perguntou se eu queria dormir. De olhar baixo, respondi negativamente balançando a cabeça. Pouco depois chegou um rapaz alto e forte que me olhou com desdém. Era André, o filho mais novo da casa. O qual travou uma conversa grosseira com padrinho João.
Ele não estava gostando da minha presença na família. Padrinho João, contudo, foi bem severo, dizendo-lhe:
Naquela ocasião, chegou Zezinho, o filho mais velho da família, com sua esposa Nancy e seus dois filhos - Antônio e Arnaldo -, que moravam pertinho dali.
Nancy era alva e bem simpática. De maneira meiga, perguntou:
Zezinho me olhou. Riu e fechou a cara. Aquele era o seu jeito, mas de bom coração. Entre todos, Nancy aproximou-se de mim. Agachada, beijou-me à testa fedida de enxofre.
Após conversarem longo tempo, Zezinho e sua família foram para casa. Meu padrinho armou uma rede num dos quartos do casarão e disse:
“Vamos dormir, Júlio!"
Fui correndo pegar um tamborete para subir porque era assim que as filhas de Tio Francisco faziam, mas, ele interrompeu:
“Não! Não! Deixe que eu lhe boto na rede".
E, em seguida deu-me a benção:
“Deus te abençoe, meu filho”.
Meu coração bateu de alegria!
Abençoar-me era uma coisa que tio Francisco jamais o fizera. Eu estava caindo de sono. E adormeci logo.
Naquela nova morada tudo era cheiroso - a rede, o lençol e a casa.
Na manhã seguinte, acordei cedo, como acontecia na casa de tio Francisco. E era escuro. No curral, Zezinho já tirava o leite das vacas. Àquela hora, ninguém estava mais deitado. Todos seguiam os costumes e o pique de trabalho de João Horácio, que já havia saído para a feira de Serra Caiada, com a metade do comboio, a fim de vender mangalhos.
Nancy ia chegando com os seus dois filhos. Ela conduzia quatro canecas de alumínio, das quais me deu uma. Chamou-me com os seus filhos para a entrada do curral feito com varas de aroeira e mourão de mororó. Levou-nos para junto de Zezinho, este pegou as canecas levando-as à xiringa do leite que caia direto do peito da vaca. Eu nunca havia tomado leite no curral. Era muito gostoso! Eu estava mesmo no paraíso! Ah, coisa boa!
Antônio e Arnaldo foram para o alpendre, onde ficaram brincando com carrinhos de plástico. Eu, que não os tinha, fui ao monturo procurar ossinhos de animais domésticos, que eu, costumeiramente, brincava na casa do tio Francisco. Os dois deixaram os carrinhos e também foram procurar ossinhos para brincar.
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